terça-feira, 24 de março de 2020

Santo Mártir Oscar Romero (1919-1980)


Santo Mártir Oscar Romero (1917-1980)

Hoje faz quarenta anos que assassinaram Santo Oscar Romero.

O cenário do martírio de dom Oscar Amulfo Romero y Goldámez (1917-1980) foi o mundo pós-colonial no qual o imperialismo de direita (EUA) guerreou contra o imperialismo de esquerda (antiga União Soviética). A América Latina, considerada área exclusiva da influência estadunidense (Monroe, 1823), ficou presa nessa luta. Organizações inspiradas na revolução bolchevista começaram a atuar em diversos países contra a versão latino-americana do feudalismo que ocultamente mantinha o colonialismo. Para neutralizar os movimentos revolucionários, os EUA estabeleceram a “Escola das Américas” no Panamá (1946) e treinaram suas forças mercenárias. A União Soviética conseguiu se estabelecer em Cuba e na Nicarágua, rompendo o monopólio do continente. Em resposta, os EUA promoveram golpes militares, começando no Brasil. Os governos fantoches assim instituídos suspenderam os direitos humanos, baseando-se em uma doutrina perversa de “segurança nacional” para manter a ordem tradicional com inaceitável crueldade. Os guerrilheiros responderam com desumanidade comparável..

Foi nessas águas turvas que um passo decisivo da inculturação da fé cristã foi dado na América Latina. A realidade socioeconômica favoreceu a recepção ao Concílio Vaticano 2º, em uma releitura do livro de Êxodo a partir da condição do povo na escravidão disfarçada. Houve uma errada identificação do ânimo assim gerado com a revolução promovida pelos soviéticos. Agentes de pastoral foram caçados e eliminados como se fossem guerrilheiros. Mártir Romero, o arcebispo de San Salvador, está entre os inúmeros outros do fratricídio impiedoso salvadorenho dessa época. Foi assassinado enquanto presidia a Eucaristia no dia 24 de março de 1980. Este bom pastor foi beatificado no dia 23 de maio de 2015. Os 35 anos que passaram desde seu assassínio incentivaram uma reflexão sobre a vocação profética cristã e vai dar início ao processo de “conversão pastoral” da Igreja para o mundo “globalizado”.

El Salvador, um pequeno país de 7 milhões de habitantes, de tamanho menor que o nosso Estado de Sergipe, fica entre a Guatemala, Honduras e o Oceano Pacífico na América Central. No início do século passado era produtor de café, mas a crise financeira dos anos 1930 começou a acirrar tensões entre o latifúndio (2% que ficava com toda a terra e 95% da riqueza do país) e a população camponesa. O que passava por governo servia aos interesses das elites, geralmente. A animosidade culminou na “La Matanza” (1932), na qual pelo menos 50 mil trabalhadores do campo foram mortos, pois eles se organizaram e reivindicaram seus direitos à terra e à vida digna. A guerra entre El Salvador e Honduras (1969) produziu um novo agravante social: a volta de 300 mil salvadorenhos de Honduras, agora como refugiados. Os esquadrões da morte intensificaram suas atividades nefastas. A crise de petróleo de 1973 foi, como se fosse, a faísca que encetou a conflagração. Para conseguir paz no campo, houve tentativa hesitante de reforma agrária, que os latifundiários conseguiram fracassar. As eleições fraudadas de 1977 deram origem a protestos populares que o governo reprimiu com mão de ferro. Simultaneamente, os esquadrões da morte da direita eliminaram sindicalistas e todos os outros simpatizantes dos camponeses. Eis o cenário tumultuado em que mártir Oscar Romero testemunhou sua fé seguindo os passos de Jesus de Nazaré.

A beatificação do Oscar Romero (23.05.2015) é uma ocasião para analisar sua vida e obra. Aqui apresentamos uma breve descrição biográfica sua, pois já falamos da situação social, econômica e política do El Salvador para melhor apreciar o desafio pastoral que ele enfrentou ao assumir como Arcebispo de San Salvador em 1977.Oscar Romero nasceu na Ciudad Barrios em 1917, e entrou no seminário em 1931. Teve de interromper os estudos para ajudar sua família, mas em pouco tempo retomou os estudos e foi enviado para Roma, onde em 1942 terminou os estudos e recebeu a ordenação presbiteral. Na volta para El Salvador, passou os próximos 24 anos desenvolvendo um trabalho pastoral em Anamorós e San Miguel, e em 1966 foi eleito secretário da Conferência Episcopal Salvadorenha. Dom Romero foi nomeado bispo auxiliar de San Salvador em 1970, onde permaneceu durante quatro anos.

Ele não conseguiu se identificar com a atualização da linha pastoral de acordo com as propostas do Vat 2 e a Conferência de Medellín, que o arcebispo Luis Chávez y González efetuava, o que deixou transparecer sua tendência conservadora. A sua transferência como bispo da Diocese de Santiago de Maria aconteceu em 1974. O governo salvadorenho e os esquadrões da morte da direita reprimiam todas as organizações dos camponeses na sua luta contra guerrilheiros bolchevistas. Em 1975, quando a “Guardia Nacional” assassinou cinco camponeses, dom Romero celebrou a missa do corpo presente; evitou denunciar o crime publicamente, mas escreveu uma carta dura ao presidente do país. Para a surpresa da ala progressista da igreja de San Salvador, Romero foi nomeado Arcebispo de El Salvador em 1977. Entretanto, sua “conversão” não demorou muito. No dia 12 do março, o padre Rutílio Grande, um jesuíta comprometido com o povo no espírito evangélico, foi assassinado, e o arcebispo se posicionou publicamente no lado dos indefesos que estavam sendo massacrados.

Durante os próximos dois anos, ele se destacou pelo seu favorecimento da defesa da vida em uma situação muito complicada, na qual, paixões ideológicas sacrificavam vidas humanas em um fratricídio sem sentido, como se essas não valessem nada. Em outubro de 1979 houve um golpe militar, e uma junta que incluía também civis tomou poder. Os EUA, que promoveram o golpe, forneceram armas e treinamento aos salvadorenhos para assegurar que não se repetiria uma Nicarágua, onde os revolucionários tinham tomado o poder, em El Salvador. Na carnificina que se seguiu, muitos, inclusive presbíteros e inúmeros agentes de pastoral, foram mortos. A guerrilha respondeu com execuções sumárias e destruição das estruturas do país. O arcebispo Romero pediu aos EUA a não mais fornecer armas para este conflito fratricida, e apelou às forças armadas salvadorenhas para não matarem seus próprios irmãos.

Logo, no dia 24 de março, dom Oscar Romero foi baleado quando presidia a celebração eucarística, e faleceu logo. No seu funeral, uma multidão estimada em 130.000 pessoas se reuniu. Houve protestos, e naquela ocasião mais 42 pessoas morreram. Dias depois, o mandante do crime, o major do Exército e fundador de um esquadrão da morte da direita Roberto D’Aubuisson, foi preso com matérias incriminantes em sua posse, mas logo foi solto sem que ninguém fosse denunciado ou julgado pelo crime de assassinato do dom Romero até hoje. A guerra civil que se deslanchou em seguida, durou 12 anos, a custo de mais 75 mil vidas salvadorenhas! O martírio do dom Oscar Romero (2) A sua transferência como bispo da Diocese de Santiago de Maria aconteceu em 1974

Mártir Oscar Romero foi nomeado arcebispo de San Salvador na época de substituição das figuras proféticas como Evaristo Arns, Aloisio Lorscheider, Helder Câmara e outros, por possuir dons
diferentes. Ao assumir o Arcebispado, ele percebeu que tinha de agir para que a verdade não fosse mais uma vítima do conflito fratricida que seu país vivia. Romero assumiu ser a voz dos sem voz por meio das suas homilias (suas homilias transmitidas por rádio foram ouvidas por 75% da população) e reportagens no jornal diocesano. Seu jornalismo reconheceu o seu ponto de vista e não enganou o público com reportagens tendenciosas atrás de uma fachada de “objetividade”. O arcebispo editorializou frequentemente sobre: 1) o direito de o povo se organizar para lutar pelos seus direitos (o regime e os militares viam em qualquer organização dos operários ou camponeses a guerrilha bolchevista); 2) a necessidade da reforma agrária (nos anos 1970, 2% da população ainda era dona de 60% das terras em El Salvador); 3) o fim da violência (levantamento feito depois do cessar fogo mediado por ONU em 1992 constatou que 85% das atrocidades foram cometidos pelos militares e os seus esquadrões da morte).

O profeta Romero promoveu a causa dos pobres sabendo que as consequências não serão diferentes do que sofriam os próprios pobres. Recusou a proteção especial que o governo lhe ofereceu. Sem se curvar diante do poder opressor, noticiou os acontecimentos da perspectiva dos pobres. Suas denúncias incluíam a absolutização da riqueza como mal radical; a riqueza e prosperidade privada
como absoluto intocável; o servilismo dos militares à oligarquia do dinheiro e a sua impunidade; a corrupção da Justiça a serviço dos poderosos contra os pobres; e a intervenção imperialista dos EUA. Seu trabalho desmascarou a mentira dos meios da comunicação social a serviço dos poderosos. Ele não deixou de criticar a atitude imobilista e intransigente de muitos cristãos.

A direita condenou-lhe como “comunista”, o que alguns de seus colegas no episcopado
salvadorenho também fizeram. Jimmy Carter (EUA) solicitou a assistência do Vaticano para calar esta voz profética. Mas, na sua vida e morte, Oscar Romero evidenciou que são os pobres e oprimidos que sinalizam o caminho da igreja no mundo de hoje. Foi a sua escolha. É o seu grande ensinamento, pois ele mesmo submeteu- -se a injustiça, exploração e repressão que seu povo
passava. As instalações do jornal diocesano foram incendiadas, e a emissora da rádio foi bombardeada. Que ele foi assassinado sobre o altar é significativo: a igreja que nascia do Vat 2 foi atingida por incomodar o sistema iníquo reinante. Para Romero, a igreja não pode ser reduzida ao âmbito cultual nem pode ser uma organização em que tudo vem de cima para baixo, como nos tempos da cristandade. A força da igreja reside na palavra de Deus transparente, sempre viva e eficaz no meio do povo. Ele falou de Deus, julgou a história de seu tempo à luz da Palavra, como fizeram os profetas. A parábola do bom samaritano (Lc 10,3-37) era seu modelo de ação. Ser solidário com os pobres não é ser “comunista” no sentido de ser revolucionário bolchevista. Sua doutrina baseia-se em Am 2,6; 3,10; 4,1; e Is 5,8. “Estes textos lidos na liturgia não são sobre um passado distante, mas referem-se às realidades hodiernas, cuja crueldade nos confunde e nos choca diariamente”, disse Romero ao aceitar o título de “Doutor Honoris Causa” na Universidade de Louvaina (Bélgica) no dia 2 de fevereiro de 1980.

O Papa Francisco proclamou santos duas das figuras mais importantes da Igreja Católica no século XX: o Papa Paulo VI, cujo pontificado foi de 1963 a 1978, e Oscar Romero, arcebispo de El Salvador assassinado em 1980. Os dois foram canonizados no domingo (14 de outubro de 2018) em uma grande cerimônia na Praça de São Pedro, no Vaticano.






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