Santo Mártir
Oscar Romero (1917-1980)
Hoje faz quarenta anos que
assassinaram Santo Oscar Romero.
O cenário do martírio de dom
Oscar Amulfo Romero y Goldámez (1917-1980) foi o mundo pós-colonial
no qual o imperialismo de direita (EUA) guerreou contra o
imperialismo de esquerda (antiga União Soviética). A América
Latina, considerada área exclusiva da influência estadunidense
(Monroe, 1823), ficou presa nessa luta. Organizações inspiradas na
revolução bolchevista começaram a atuar em diversos países contra
a versão latino-americana do feudalismo que ocultamente mantinha o
colonialismo. Para neutralizar os movimentos revolucionários, os EUA
estabeleceram a “Escola das Américas” no Panamá (1946) e
treinaram suas forças mercenárias. A União Soviética conseguiu se
estabelecer em Cuba e na Nicarágua, rompendo o monopólio do
continente. Em resposta, os EUA promoveram golpes militares,
começando no Brasil. Os governos fantoches assim instituídos
suspenderam os direitos humanos, baseando-se em uma doutrina perversa
de “segurança nacional” para manter a ordem tradicional com
inaceitável crueldade. Os guerrilheiros responderam com desumanidade
comparável..
Foi nessas águas turvas que um
passo decisivo da inculturação da fé cristã foi dado na América
Latina. A realidade socioeconômica favoreceu a recepção ao
Concílio Vaticano 2º, em uma releitura do livro de Êxodo a partir
da condição do povo na escravidão disfarçada. Houve uma errada
identificação do ânimo assim gerado com a revolução promovida
pelos soviéticos. Agentes de pastoral foram caçados e eliminados
como se fossem guerrilheiros. Mártir Romero, o arcebispo de San
Salvador, está entre os inúmeros outros do fratricídio impiedoso
salvadorenho dessa época. Foi assassinado enquanto presidia a
Eucaristia no dia 24 de março de 1980. Este bom pastor foi
beatificado no dia 23 de maio de 2015. Os 35 anos que passaram desde
seu assassínio incentivaram uma reflexão sobre a vocação
profética cristã e vai dar início ao processo de “conversão
pastoral” da Igreja para o mundo “globalizado”.
El Salvador, um pequeno país de
7 milhões de habitantes, de tamanho menor que o nosso Estado de
Sergipe, fica entre a Guatemala, Honduras e o Oceano Pacífico na
América Central. No início do século passado era produtor de café,
mas a crise financeira dos anos 1930 começou a acirrar tensões
entre o latifúndio (2% que ficava com toda a terra e 95% da riqueza
do país) e a população camponesa. O que passava por governo servia
aos interesses das elites, geralmente. A animosidade culminou na “La
Matanza” (1932), na qual pelo menos 50 mil trabalhadores do campo
foram mortos, pois eles se organizaram e reivindicaram seus direitos
à terra e à vida digna. A guerra entre El Salvador e Honduras
(1969) produziu um novo agravante social: a volta de 300 mil
salvadorenhos de Honduras, agora como refugiados. Os esquadrões da
morte intensificaram suas atividades nefastas. A crise de petróleo
de 1973 foi, como se fosse, a faísca que encetou a conflagração.
Para conseguir paz no campo, houve tentativa hesitante de reforma
agrária, que os latifundiários conseguiram fracassar. As eleições
fraudadas de 1977 deram origem a protestos populares que o governo
reprimiu com mão de ferro. Simultaneamente, os esquadrões da morte
da direita eliminaram sindicalistas e todos os outros simpatizantes
dos camponeses. Eis o cenário tumultuado em que mártir Oscar Romero
testemunhou sua fé seguindo os passos de Jesus de Nazaré.
A beatificação do Oscar Romero
(23.05.2015) é uma ocasião para analisar sua vida e obra. Aqui
apresentamos uma breve descrição biográfica sua, pois já falamos
da situação social, econômica e política do El Salvador para
melhor apreciar o desafio pastoral que ele enfrentou ao assumir como
Arcebispo de San Salvador em 1977.Oscar Romero nasceu na Ciudad
Barrios em 1917, e entrou no seminário em 1931. Teve de interromper
os estudos para ajudar sua família, mas em pouco tempo retomou os
estudos e foi enviado para Roma, onde em 1942 terminou os estudos e
recebeu a ordenação presbiteral. Na volta para El Salvador, passou
os próximos 24 anos desenvolvendo um trabalho pastoral em Anamorós
e San Miguel, e em 1966 foi eleito secretário da Conferência
Episcopal Salvadorenha. Dom Romero foi nomeado bispo auxiliar de San
Salvador em 1970, onde permaneceu durante quatro anos.
Ele não conseguiu se identificar
com a atualização da linha pastoral de acordo com as propostas do
Vat 2 e a Conferência de Medellín, que o arcebispo Luis Chávez y
González efetuava, o que deixou transparecer sua tendência
conservadora. A sua transferência como bispo da Diocese de Santiago
de Maria aconteceu em 1974. O governo salvadorenho e os esquadrões
da morte da direita reprimiam todas as organizações dos camponeses
na sua luta contra guerrilheiros bolchevistas. Em 1975, quando a
“Guardia Nacional” assassinou cinco camponeses, dom Romero
celebrou a missa do corpo presente; evitou denunciar o crime
publicamente, mas escreveu uma carta dura ao presidente do país.
Para a surpresa da ala progressista da igreja de San Salvador, Romero
foi nomeado Arcebispo de El Salvador em 1977. Entretanto, sua
“conversão” não demorou muito. No dia 12 do março, o padre
Rutílio Grande, um jesuíta comprometido com o povo no espírito
evangélico, foi assassinado, e o arcebispo se posicionou
publicamente no lado dos indefesos que estavam sendo massacrados.
Durante os próximos dois anos,
ele se destacou pelo seu favorecimento da defesa da vida em uma
situação muito complicada, na qual, paixões ideológicas
sacrificavam vidas humanas em um fratricídio sem sentido, como se
essas não valessem nada. Em outubro de 1979 houve um golpe militar,
e uma junta que incluía também civis tomou poder. Os EUA, que
promoveram o golpe, forneceram armas e treinamento aos salvadorenhos
para assegurar que não se repetiria uma Nicarágua, onde os
revolucionários tinham tomado o poder, em El Salvador. Na
carnificina que se seguiu, muitos, inclusive presbíteros e inúmeros
agentes de pastoral, foram mortos. A guerrilha respondeu com
execuções sumárias e destruição das estruturas do país. O
arcebispo Romero pediu aos EUA a não mais fornecer armas para este
conflito fratricida, e apelou às forças armadas salvadorenhas para
não matarem seus próprios irmãos.
Logo, no dia 24 de março, dom
Oscar Romero foi baleado quando presidia a celebração eucarística,
e faleceu logo. No seu funeral, uma multidão estimada em 130.000
pessoas se reuniu. Houve protestos, e naquela ocasião mais 42
pessoas morreram. Dias depois, o mandante do crime, o major do
Exército e fundador de um esquadrão da morte da direita Roberto
D’Aubuisson, foi preso com matérias incriminantes em sua posse,
mas logo foi solto sem que ninguém fosse denunciado ou julgado pelo
crime de assassinato do dom Romero até hoje. A guerra civil que se
deslanchou em seguida, durou 12 anos, a custo de mais 75 mil vidas
salvadorenhas! O martírio do dom Oscar Romero (2) A sua
transferência como bispo da Diocese de Santiago de Maria aconteceu
em 1974
Mártir Oscar Romero foi nomeado
arcebispo de San Salvador na época de substituição das figuras
proféticas como Evaristo Arns, Aloisio Lorscheider, Helder Câmara e
outros, por possuir dons
diferentes. Ao assumir o
Arcebispado, ele percebeu que tinha de agir para que a verdade não
fosse mais uma vítima do conflito fratricida que seu país vivia.
Romero assumiu ser a voz dos sem voz por meio das suas homilias (suas
homilias transmitidas por rádio foram ouvidas por 75% da população)
e reportagens no jornal diocesano. Seu jornalismo reconheceu o seu
ponto de vista e não enganou o público com reportagens tendenciosas
atrás de uma fachada de “objetividade”. O arcebispo
editorializou frequentemente sobre: 1) o direito de o povo se
organizar para lutar pelos seus direitos (o regime e os militares
viam em qualquer organização dos operários ou camponeses a
guerrilha bolchevista); 2) a necessidade da reforma agrária (nos
anos 1970, 2% da população ainda era dona de 60% das terras em El
Salvador); 3) o fim da violência (levantamento feito depois do
cessar fogo mediado por ONU em 1992 constatou que 85% das atrocidades
foram cometidos pelos militares e os seus esquadrões da morte).
O profeta Romero promoveu a causa
dos pobres sabendo que as consequências não serão diferentes do
que sofriam os próprios pobres. Recusou a proteção especial que o
governo lhe ofereceu. Sem se curvar diante do poder opressor,
noticiou os acontecimentos da perspectiva dos pobres. Suas denúncias
incluíam a absolutização da riqueza como mal radical; a riqueza e
prosperidade privada
como absoluto intocável; o
servilismo dos militares à oligarquia do dinheiro e a sua
impunidade; a corrupção da Justiça a serviço dos poderosos contra
os pobres; e a intervenção imperialista dos EUA. Seu trabalho
desmascarou a mentira dos meios da comunicação social a serviço
dos poderosos. Ele não deixou de criticar a atitude imobilista e
intransigente de muitos cristãos.
A direita condenou-lhe como
“comunista”, o que alguns de seus colegas no episcopado
salvadorenho também fizeram.
Jimmy Carter (EUA) solicitou a assistência do Vaticano para calar
esta voz profética. Mas, na sua vida e morte, Oscar Romero
evidenciou que são os pobres e oprimidos que sinalizam o caminho da
igreja no mundo de hoje. Foi a sua escolha. É o seu grande
ensinamento, pois ele mesmo submeteu- -se a injustiça, exploração
e repressão que seu povo
passava. As instalações do
jornal diocesano foram incendiadas, e a emissora da rádio foi
bombardeada. Que ele foi assassinado sobre o altar é significativo:
a igreja que nascia do Vat 2 foi atingida por incomodar o sistema
iníquo reinante. Para Romero, a igreja não pode ser reduzida ao
âmbito cultual nem pode ser uma organização em que tudo vem de
cima para baixo, como nos tempos da cristandade. A força da igreja
reside na palavra de Deus transparente, sempre viva e eficaz no meio
do povo. Ele falou de Deus, julgou a história de seu tempo à luz da
Palavra, como fizeram os profetas. A parábola do bom samaritano (Lc
10,3-37) era seu modelo de ação. Ser solidário com os pobres não
é ser “comunista” no sentido de ser revolucionário bolchevista.
Sua doutrina baseia-se em Am 2,6; 3,10; 4,1; e Is 5,8. “Estes
textos lidos na liturgia não são sobre um passado distante, mas
referem-se às realidades hodiernas, cuja crueldade nos confunde e
nos choca diariamente”, disse Romero ao aceitar o título de
“Doutor Honoris Causa” na Universidade de Louvaina (Bélgica) no
dia 2 de fevereiro de 1980.
O Papa Francisco proclamou santos
duas das figuras mais importantes da Igreja Católica no século XX:
o Papa Paulo VI, cujo pontificado foi de 1963 a 1978, e Oscar Romero,
arcebispo de El Salvador assassinado em 1980. Os dois foram
canonizados no domingo (14 de outubro de 2018) em uma grande
cerimônia na Praça de São Pedro, no Vaticano.
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