domingo, 16 de dezembro de 2018

Multiplicar os pães e caminhar sobre as águas (4)

Jesus de Nazaré, a Boa Notícia para o século 21 (26)
Multiplicar os pães e caminhar sobre as águas (4)

9. Agora, depois de examinar os seis textos que narram o milagre de multiplicação dos pães, nós estudaremos o episódio de Jesus caminhar sobre as águas. Ele vai ao encontro dos seus discípulos dos quais ele tinha se afastado no final do episódio da multiplicação. Estes textos se encontram em Mc 6,45-52; Mt 14,22-33; e Jo 6,16-21. É importante notar que há também outros narrativos que falam de Jesus e o mar: Jesus acalma a tempestade no mar (Mc 4,35-41; Mt 8,23-27; e Lc 8,22-25). Aindahá outros textos que falam de Jesus ensinando junto ao mar (Mc 4,1; e Mt 13,1-2).

Faremos algumas observações antes de começar analisar os textos que falam da segunda multiplicação; é notável que todas as narrativas da multiplicação dos pães nos contam que, no fim, quando todo mundo comeu e ficou satisfeito e as sobras foram recolhidas, há um distanciamento de Jesus dos seus discípulos como também da multidão, como indicamos acima. Na verdade o Evangelho de João nos informa especificamente que ao perceber que havia uma conspiração para fazer dele um rei, Jesus retirou-se a montanha. Os discípulos, por sua vez, foram de barco para outro lugar. A segunda observação é que há muitos textos que falam de Jesus e o mar da mesma maneira que há muitos outros textos que falam de Jesus em sua relação ao alimento. A terceira é que os estudos linguísticos contemporâneos nos permitem apreciar melhor a natureza da linguagem bíblica. À luz desta nova apreciação dos textos bíblicos é importante o envolvimento dos cristãos na política para que o Reino de Deus se torne uma realidade dentro da história humana neste início do terceiro milênio. É impressionante ver como a linguagem metafórica da Bíblia nos convoca a essa tarefa!  

10. Para comentar sobre os textos que falam de Jesus caminhar sobre o mar: Marcos e Mateus mencionam que Jesus obrigou os discípulos ir embora de barco para outro lugar, no final da multiplicação dos pães. Assim fizeram. Seu barco estava no mar agitado, estavam cansados de remar contra o vento, sem alcançar seu destino. Era uma noite escura e Jesus não estava mais com eles. De acordo com o texto de Marcos, Jesus, vendo isso, foi de madrugada ao seu encontro caminhando sobre as águas. Queria ultrapassá-los. Os discípulos vendo-o caminhar sobre as águas imaginaram que era um fantasma e gritaram aterrorizados. Outra vez, por sua própria iniciativa Jesus os assegura, ou melhor, revela sua identidade e pede lhes não terem medo. Ele subiu no barco e o vento se acalmou. De novo, Marcos faz questão de afirmar que eles ainda continuavam com medo, pois não tinham entendido nada a respeito dos pães porque o coração deles estava endurecido.

11. O texto de Mateus que relata o episódio de Jesus caminhar sobre as águas (cf. Mt 14,22-34), na sua primeira parte (vv.22-27), assemelha ao texto de Marcos. O autor adiciona na segunda parte, nos seus vv.28-34, um detalhe fascinante. Uma vez que os discípulos reconheceram Jesus, ainda distante do barco, Pedro tem um pedido especial. Ele quer ir até Jesus caminhando sobre o mar. Jesus o chamou para fazer sua experiência. Pedro saiu de barco e começou a andar em direção a Jesus. Tudo correu muito bem até que ele começou a sentir o vento forte e começou a afundar. Alarmado, Pedro gritou pedindo socorro a Jesus e este estendeu sua mão e o segurou, mas não sem repreendê-lo pela sua fraqueza da fé que gerou a dúvida. Assim que os dois subiram na barca o vento se acalmou. A reação dos discípulos ao acontecido foi de ajoelharem-se diante do Nazareno fazendo uma profissão da fé: “Tu és verdadeiramente Filho de Deus”, uma fórmula semelhante a que o centurião usou em Mc 15,39.

12. Referimos a muitos textos espalhados nos quatro evangelhos para estudar os dois milagres: o de multiplicação dos pães e o “caminhar sobre as águas” que Jesus de Nazaré realizou. Tradicionalmente estes milagres foram considerados provas da sua divindade e o consequente domínio sobre a natureza. No entanto o leitor percebeu que nós escolhemos tratar os dois milagres como um só bloco a fim de apontar para outra interpretação.

Vimos que no final do milagre da multiplicação dos pães é um momento de tensão, de distanciamento entre, de um lado, Jesus e seus discípulos, e de outro, Jesus da multidão. De acordo com os textos de Marcos de Mateus, Jesus obriga os discípulos irem para outro lugar, de barca. Entrementes o texto de João assinala que Jesus tinha percebido o plano para fazer dele um rei e por isso ele se distanciou de todos, foi para a montanha para rezar. Aqui, o notável é que o Nazareno se retira para rezar, isto é, estar em comunhão com seu Pai no mais um momento decisivo no seu ministério.

O reencontro de Jesus com seus discípulos é da sua iniciativa. Os discípulos estão no mar agitado, remando contra o vento e sem chegar a seu destino, numa noite escura. Jesus é visto por eles caminhando sobre as águas. A reação deles é gritar por medo, por ter visto um fantasma, algo que dá medo. Eles ainda não tinham chegado a reconhecer aquele que é capaz de caminhar sobre as águas, isto é, aquele que tem uma proposta alternativa de resolver os problemas dos humanos, de maneira igualitária, muito diferente da proposta meritocrática capitalista do império que controlava o mar!
É Jesus que revela sua identidade aos discípulos amendrados e tira seu medo. O texto de João menciona que “quiseram então receber Jesus na barca”. Quando ele subiu no barco o vento se acalmou e eles logo chegaram ao seu destino. O texto considerado mais primitivo, o de Marcos, afirma explicitamente: é que não tinham entendido nada a respeito dos pães, porque o coração deles estava endurecido.

Estes dois milagres têm um valor simbólico extraordinário, que se evidencia levando em consideração a natureza metafórica da linguagem bíblica. Na “multiplicação dos pães” dois métodos de organização sócio-político-econômica estão em jogo. O tradicional e mais comum critério de compra e venda que favorece aquele que tem (capitalismo) é substituído por outro que favorece a distribuição do que está disponível, de acordo com a necessidade de cada um. Nós sabemos como este igualitarismo sonhado continua sendo uma utopia ainda. Na retomada atual do Brasil pelas forças obscurantistas a serviço neoliberalismo neocolonialista, há um grande esforço para ofuscar a experiência de igualitarismo realizado no país nas últimas décadas; isto, num circo ridículo (mas efetivo) montado com componentes políticos-judiciais-midiáticos.

O susto que os discípulos levam ao ver Jesus caminhar sobre as águas refere à natureza assustadora do igualitarismo baseado nas necessidades de todos os seres humanos o que o Reino de Deus promove. É muito diferente do modo tradicional capitalista imperial meritocrática que exclui os menos dotados. Nos trechos neotestamentários que examinamos até agora, lemos sobre Jesus e sua relação com o “mar”: Jesus sente sobre o mar para ensinar (cf. Mc 4,1); Jesus acalma o mar agitado que amedronta os discípulos (cf. Mc 4,35-41); e a pesca milagrosa que deixa os discípulos espantados(cf. Lc 5,4-11; também Jo 21,1-14). Que é Jesus que sai ao encontro dos discípulos que estavam distantes dele, por ainda não tinham captado a pedagogia do Reino pela dureza do seu coração, aponta para a inciativa divina pela qual o ser humano aprende a responder só com dificuldade.

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