sábado, 13 de outubro de 2018

Ser solidário com os pobres não ser comunista!


Canonização do Oscar Romero, mártir pelo Reino de Deus. (3)
III. Ser solidário com os pobres não é ser comunista

19. Mártir Oscar Romero foi nomeado arcebispo de San Salvador na época de substituição das figuras proféticas como Evaristo Arns, Aloisio Lorscheider, Helder Câmara e outros, por possuir dons diferentes daqueles que os detentores de poder no Vaticano aprovavam. Ao assumir o Arcebispado, ele percebeu que tinha de agir para que a verdade não fosse mais uma vítima do conflito fratricida que seu país vivia.

20. Romero assumiu ser a voz dos sem voz por meio das suas homilias (suas homilias transmitidas por rádio foram ouvidas por 75% da população) e reportagens no jornal diocesano. Seu jornalismo reconheceu o seu ponto de vista e não enganou o público com reportagens tendenciosas atrás de uma fachada de “objetividade”.

21. O arcebispo editorializou frequentemente sobre: 1) o direito de o povo se organizar para lutar pelos seus direitos (o regime e os militares viam em qualquer organização dos operários ou camponeses a guerrilha bolchevista); 2) a necessidade da reforma agrária (nos anos 1970, 2% da população ainda era dona de 60% das terras em El Salvador); 3) o fim da violência (levantamento feito depois do cessar fogo mediado por ONU em 1992 constatou que 85% das atrocidades foram cometidos pelos militares e os seus esquadrões da morte).

22. O profeta Romero promoveu a causa dos pobres sabendo que as consequências não serão diferentes do que sofriam os próprios pobres. Recusou a proteção especial que o governo lhe ofereceu. Sem se curvar diante do poder opressor, noticiou os acontecimentos da perspectiva dos pobres.

23. Suas denúncias incluíam a absolutização da riqueza como mal radical; a riqueza e prosperidade privada como absoluto intocável; o servilismo dos militares à oligarquia do dinheiro e a sua impunidade; a corrupção da Justiça a serviço dos poderosos contra os pobres; e a intervenção imperialista dos EUA.

24. Seu trabalho desmascarou a mentira dos meios da comunicação social a serviço dos poderosos. Ele não deixou de criticar a atitude imobilista e intransigente de muitos cristãos. A direita condenou-lhe como “comunista”, o que alguns de seus colegas no episcopado salvadorenho também fizeram. Jimmy Carter (o Presidente dos EUA) solicitou a assistência do Vaticano para calar esta voz profética.

25. Na sua vida e morte, Oscar Romero evidenciou que são os pobres e oprimidos que sinalizam o caminho da igreja no mundo de hoje. Foi a sua escolha. É o seu grande ensinamento, pois ele mesmo submeteu-se a injustiça, exploração e repressão que seu povo passava. As instalações do jornal diocesano foram incendiadas, e a emissora da rádio foi bombardeada.

26. Que ele foi assassinado sobre o altar é significativo: a igreja que nascia do Vat II foi atingida por incomodar o sistema iníquo reinante.

27. Para Romero, a igreja não pode ser reduzida ao âmbito cultual nem pode ser uma organização em que tudo vem de cima para baixo, como nos tempos da “cristandade”. A força da igreja reside na palavra de Deus transparente, sempre viva e eficaz no meio do povo. Ele falou de Deus, julgou a história de seu tempo à luz da Palavra, como fizeram os profetas outrora.

29. A parábola do bom samaritano (Lc 10,3-37) era seu modelo de ação. Ser solidário com os pobres não é ser “comunista” no sentido de ser revolucionário bolchevista. Sua doutrina baseia-se em Am 2,6; 3,10; 4,1; e Is 5,8. “Estes textos lidos na liturgia não são sobre um passado distante, mas referem-se às realidades hodiernas, cuja crueldade nos confunde e nos choca diariamente”, disse Romero ao aceitar o título de “Doutor Honoris Causa” na Universidade de Luvaina (Bélgica) no dia 2 de fevereiro de 1980.

30. Com variações muito sofisticadas, o imperialismo está empenhado em restabelecer sua dominação do povo brasileiro após de mais de uma década de uma experiência democrática participativa. É neste contexto que a relevância do martírio do Oscar para nós se torna clara. A canonização do Dom Oscar Arnulfo Romero y Goldámez fortalece os muitos seguidores de Jesus no Brasil que estão dando suas próprias vidas a fim de que os brasileiros mais fracos e necessitados tenham uma vida melhor!

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Canonização do Oscar Romero, mártir pelo Reino de Deus

Canonização do Oscar Romero, mártir pelo Reino de Deus. (2)
II. Dados biográficos do dom Oscar Romero

11. Apresentamos uma breve descrição biográfica do Oscar Romero depois de falarmos da situação social, econômica e política do El Salvador para melhor apreciar o desafio pastoral que ele enfrentou ao assumir como Arcebispo de San Salvador em 1977.

12. Oscar Romero nasceu na Ciudad Barrios, San Miguel aos 15 de agosto de 1917, e entrou no seminário em 1931. Teve de interromper os estudos para ajudar sua família, mas em pouco tempo retomou os estudos e foi enviado para Roma, onde em 1942 terminou os estudos e recebeu a ordenação presbiteral. Na volta para El Salvador, passou os próximos 24 anos desenvolvendo um trabalho pastoral em Anamorós e San Miguel, e em 1966 foi eleito secretário da Conferência Episcopal Salvadorenha.

13. Dom Romero foi nomeado bispo auxiliar de San Salvador em 1970, onde permaneceu durante quatro anos. Ele não conseguiu se identificar com a atualização da linha pastoral de acordo com as propostas do Vat 2 e a Conferência de Medellín, que o arcebispo Luis Chávez y González efetuava, o que deixou transparecer sua tendência conservadora. A sua transferência como bispo da Diocese de Santiago de Maria aconteceu em 1974.

14. O governo salvadorenho e os esquadrões da morte da direita reprimiam todas as organizações dos camponeses na sua luta contra guerrilheiros bolchevistas. Em 1975, quando a “Guardia Nacional” assassinou cinco camponeses, dom Romero celebrou a missa do corpo presente; evitou denunciar o crime publicamente, mas escreveu uma carta dura ao presidente do país.

15. Para a surpresa da ala progressista da igreja de San Salvador, Romero foi nomeado Arcebispo de El Salvador em 1977. Entretanto, sua “conversão” não demorou muito. No dia 12 do março, o padre Rutílio Grande, um jesuíta comprometido com o povo no espírito evangélico, foi assassinado, e o arcebispo se posicionou publicamente no lado dos indefesos que estavam sendo massacrados.
16. Durante os próximos dois anos, ele se destacou pelo seu favorecimento da defesa da vida em uma situação muito complicada, na qual paixões ideológicas sacrificavam vidas humanas em um fratricídio sem sentido, como se essas não valessem nada. Em outubro de 1979 houve um golpe militar, e uma junta que incluía também civis tomou o poder. Os EUA, que promoveram o golpe, forneceram armas e treinamento aos salvadorenhos para assegurar que não se repetiria uma Nicarágua, onde os revolucionários tinham tomado o poder, em El Salvador.

17. Na carnificina que se seguiu, muitos, inclusive presbíteros e inúmeros agentes de pastoral, foram mortos. A guerrilha respondeu com execuções sumárias e destruição das estruturas do país. O arcebispo Romero pediu aos EUA a não mais fornecer armas para este conflito fratricida, e apelou às forças armadas salvadorenhas para não matarem seus próprios irmãos. Logo, no dia 24 de março, dom Oscar Romero foi baleado quando presidia a celebração eucarística, e faleceu logo.

18. No seu funeral, uma multidão estimada em 250.000 pessoas se reuniu. Houve protestos, e naquela ocasião mais 42 pessoas morreram. Dias depois, o mandante do crime, o major do Exército e fundador de um esquadrão da morte da direita, Roberto D’Aubuisson, foi preso com matérias incriminantes em sua posse, mas logo foi solto sem que ninguém fosse denunciado ou julgado pelo crime de assassinato do dom Romero até hoje. A guerra civil que se deslanchou em seguida durou 12 anos, a custo de mais 75 mil vidas salvadorenhas!

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Mártir Oscar Romero

Canonização do Oscar Romero, mártir pelo Reino de Deus. (1)
I. O cenário do martírio.
1. Oscar Arnulfo Romero y Goldámez (1917-1980) foi o Arcebispo de San Salvador, capital de El Salvador de 1977 até 24 de março de 1980 quando foi morto por um franco-atirador do exército de El Salvador, enquanto celebrava a Eucaristia. 38 anos depois da sua morte, é programada sua canonização por Papa Francisco, numa cerimônia na Praça de São Pedro, Vaticano, no dia 14 próximo durante a qual Papa Paulo VI e vários outros serão elevados a honra do altar.  Já no dia 23 de maio de 2015 ele foi beatificado, considerado um mártir pela fé.

2. O cenário do martírio de dom Oscar Arnulfo Romero y Goldámez era o mundo pós-colonial no qual o imperialismo de direita (EUA) guerreava contra o imperialismo de esquerda (antiga União Soviética). A América Latina, considerada área exclusiva da influência estadunidense (Monroe, 1823), ficou presa nessa peleja.

3. Organizações inspiradas na revolução bolchevista começaram a atuar em diversos países contra a versão latino-americana do feudalismo que ocultamente mantinha o colonialismo. Para neutralizar os movimentos revolucionários, os EUA estabeleceram a “Escola das Américas” no Panamá (1946) e treinaram suas forças mercenárias latino-americanas que assegurariam seu domínio na região.

4. A União Soviética conseguiu se estabelecer em Cuba e na Nicarágua, quebrando o monopólio estadunidense do continente. Em resposta, os EUA promoveram golpes militares, começando no Brasil (1964). Os governos fantoches assim instituídos suspenderam os direitos humanos, baseando-se em uma doutrina perversa de “segurança nacional” para manter a ordem tradicional com inaceitável crueldade. Os guerrilheiros responderam com desumanidade comparável.

5. Foi nessas águas turvas que um passo decisivo da inculturação da fé cristã foi dado na América Latina. A realidade socioeconômica favoreceu a recepção ao Concílio Vaticano 2º, em uma releitura, bem popular, do livro de Êxodo a partir da condição do povo na escravidão disfarçada no continente. Houve uma errada identificação do ânimo assim gerado com a revolução promovida pelos soviéticos. Agentes de pastoral foram caçados e eliminados como se fossem guerrilheiros.

6. Mártir Romero, o arcebispo de San Salvador, está entre os inúmeros outros do fratricídio impiedoso salvadorenho dessa época. Os anos que passaram desde seu assassínio até sua canonização tem incentivado uma reflexão sobre a vocação profética cristã que vem enriquecendo o processo de “conversão pastoral” da Igreja inserida no mundo “globalizado”.

7. El Salvador, um pequeno país de alguns poucos milhões de habitantes, de tamanho menor que o nosso Estado de Sergipe, fica entre a Guatemala, Honduras e o Oceano Pacífico na América Central. No início do século passado era produtor de café, mas a crise financeira dos anos 1930 começou a acirrar tensões entre o latifúndio (2% que ficava com toda a terra e 95% da riqueza do país) e a população camponesa com o 5% restante. O que passava por governo servia aos interesses das elites, geralmente. A animosidade culminou na “La Matanza” (1932), na qual pelo menos 50 mil trabalhadores do campo foram mortos, pois eles se organizaram e reivindicaram seus direitos à terra e à vida digna.

8. A guerra entre El Salvador e Honduras (1969) produziu um novo agravante social: a volta de 300 mil salvadorenhos de Honduras, agora como refugiados. Os esquadrões da morte intensificaram suas atividades nefastas. A crise de petróleo de 1973 foi, como se fosse, a faísca que encetou a conflagração.

9. Para conseguir paz no campo, houve tentativa hesitante de reforma agrária, que os latifundiários conseguiram fracassar. As eleições fraudadas de 1977 deram origem a protestos populares que o governo reprimiu com mão de ferro. Simultaneamente, os esquadrões da morte da direita eliminaram sindicalistas e todos os outros simpatizantes dos camponeses.

10. Eis o cenário tumultuado em que mártir Oscar Romero testemunhou sua fé seguindo os passos de Jesus de Nazaré.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Parábolas do Reino – a semente e o semeador


Jesus de Nazaré, a Boa Notícia para o século 21 (22)

Parábolas do Reino – a semente e o semeador

Como nós já vimos, numa primeiro momento, o autor do Evangelho de Marcos nos apresentou Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, que João Batista anunciava na sua pregação no deserto e batizou no rio Jordão.  Este Jesus começou sua pregação depois que João foi preso. Ele anunciava a chegada do Reino de Deus. O autor nos contou de uma série de atividades do Nazareno para demonstrar a natureza libertadora do Reino, a nova criação. A reação dos poderosos, os “cidadãos de bem”, era decidir mata-lo ao perceber que ele era um perigo para o sistema tradicional que eles mantinham. Entretanto o Nazareno era imensamente popular entre os galileus, o que impedia a eliminação rápida e fácil deste rabino. Logo começaram uma campanha midiática difamadora contra Jesus acusando o de “corrupção”, isto é, ser possuído por Belzebu para poder realizar exorcismos. Era o início de um projeto de alcance longo que eliminaria o elemento que incomodava as elites. Até mesmo a própria família de Jesus chegou a acreditar que ele “ficou louco”; foi o momento em que Jesus anuncia os critérios de pertencer a nova família do Reino de Deus: fazer a vontade de Deus e não mais a consanguinidade.

Nessa conjuntura Marcos começa nos apresentar as parábolas de Jesus. O dicionário define a parábola assim: “narrativa alegórica que evoca, por comparação, valores de ordem superior, encerra lições de vida e pode conter preceitos morais ou religiosos”. No capítulo 4 de Marcos temos uma série de parábolas reunidas, a chave hermenêutica para entender o sentido da prática de Jesus. As parábolas são dirigidas à multidão e aos discípulos. O que chama a nossa atenção é que elas mostram como o anúncio do Evangelho da vida resgatada cria novos conflitos, ou revela os que já existem na sociedade, na vida cotidiana.

O primeiro texto de parábola que temos encontra-se no Mc 4,1-9. Os outros evangelhos sinóticos têm seu paralelo (cf. Mt 13,1-9; Lc 8,4-8). O cenário é a beira-mar. Por causa da numerosa multidão que se reuniu para ouvi-lo, Jesus sentou-se numa barca sobre o mar, ensinava muitas coisas à multidão que estava em terra. Ele ensinava em parábolas; a parábola que o autor nos conta é: um semeador saiu para semear. Aconteceu que parte da semente caiu à beira do caminho; estas, os pássaros as comeram. Outra parte caiu em terreno pedregoso; estas brotaram logo, porém não sobreviveram por falta de condições favoráveis. Outra parte caiu entre os espinheiros, foram sufocadas e não deram frutos. Por fim, a parte que caiu na terra boa produziram frutos; algumas trinta, sessenta e até cem por semente. No final do trecho temos uma admoestação: “Quem tem ouvidos ouça”.

Os textos de Mateus (13,1-9) e Lucas (8,4-8) concordam com o de Marcos em todos os detalhes. A nota de rodapé na Nova Bíblia Pastoral diz o seguinte: “A parábola faz pensar na luta de um camponês sem-terra paciente e confiante, que não desiste mesmo diante dos mais difíceis obstáculos, e confia em poder produzir o que é necessário para sobreviver com sua gente”. Nenhum dos três textos não fala nada sobre a preparação da terra que o semeador faz antes de semear. Todos estes textos repetem o sobreaviso: “Quem tem ouvidos ouça”.

De um lado, o Reino de Deus é uma realidade histórica que segue o ritmo da nossa vida cotidiana, sujeito a destino comum de todos os empreendimentos humanos! De outro lado a advertência: “Quem tem ouvidos, ouça” acentua a importância da decisão humana na realização deste projeto em nosso meio. Será que no fundo dos nossos debates eleitorais não está em jogo a aceitação do projeto de Reino de Deus ou a sua rejeição?